segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CARTA POEMA A JOÃO CABRAL





CARTA POEMA PARA JOÃO CABRAL DE MELO NETO

 “Saio de meu poema como quem lava as mãos.”
                                                                        João Cabral de Melo Neto





Um dia, João, ainda moço

fui beber da fonte de seus versos

contidos, matemáticos, racionais

montados pedra sobre pedra

de sua precisa engenharia.

 Foi meu primeiro aprendizado

pela pedra. Não obstante, João,

ainda restou comigo a emoção

da poesia esparramada

em sol, em luas, mares exclamativos,

praias cheias de espumas...

de tardes brancas como o ar.

Mas me contenho quando o pássaro

aparece em minha janela

e não sei mais o nome desse pássaro

que é só plumas e voo.

Mas é um pássaro, objeto concreto

da poesia, como também é objeto

da poesia, a janela que se abre para o infinito.

Aprendi com você, João,

que um poeta sozinho não tece a manhã.

Por isso chamei os poetas sem nome

nos jornais, anônimos, mas que aos milhares

anunciam nas madrugadas seus gritos

de galos para uma humanidade

que já não sei dizer o nome:

Se bomba, ou flor.

Aprendi com você, João,

que o pássaro é tão mineral

como o pássaro que tento

segurar na folha branca.

Assim como é mineral,

não somente a flor que brota

nos jardins, nos asfaltos,

mas também é mineral a flor

clara, perfumada, transparente

que permanece na folha branca

onde o poeta escreve.

Tudo é mineral, João,

até a lâmina que corta nossa carne

a terrível lâmina do tempo

que corta a flor e o pássaro,

seca os rios, o Capibaribe,

transformando toda beleza em fezes.

E por falar em beleza, João,

a beleza é tão mineral

que saio de meu poema

com as mãos ensanguentadas

de poesia. E não lavo

minhas mãos.

Descanse em paz, João,

que a eternidade é toda mineral.

Aqui continuamos vivendo

nossa vida severina.

                  

                        Antonio Ventura

                        Autor de O catador de palavras

                        ocatadordepalavras@uol.com.br












Um comentário:

  1. Maravilhoso! Sintetizou de forma mineral, ácida, petrificada a obra de um poeta SINGULAR, se deu ao extremo para deixar a nós severinos, a certeza de que não há melhor resposta do que a vida que se deixa explodida, a DELE, está explodida nos versos que fluem como rio, espesso...
    Parabéns, Menalton!

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